Esta sou eu. E estou a preparar o discurso.

No décimo segundo ano não sabia bem o que queria fazer da vida. Aliás, mais grave, para a vida tinha tempo mas não sabia bem que curso seguir. Gostava de letras e línguas, de palavras, de história. Gostava de ler e escrever. Segui direito. Não por sonho ou vocação mas por opção, por achar amplo, diversificado, com diversas vertentes futuras. No final da licenciatura fui fazer o estágio da Ordem, era a coisa natural, o passo que me pareceu com lógica "o seguinte". Fiz mestrado ao mesmo tempo que trabalhei num escritório que rapidamente se revelou muito mais do que um estágio. Tinha os meus clientes com quem desenvolvi relações estreitas e depressa percebi do que gostava verdadeiramente ali: de resolver os problemas. Nunca quis em especial ser advogada mas ser advogada dava-me um gosto imenso que encontrei ali. Resolver os problemas dos clientes e ajudá-los verdadeiramente, eis o sentido do meu trabalho. 
Quando saí do escritório por constrangimentos da vida (ida para Lisboa) fui parar a uma empresa. A lógica empresarial é diametralmente oposta à de uma sociedade de advogados. Deixamos de ter clientes. Agimos antes e não depois. Ninguém te procura para resolver o que quer que seja. Antecipas em vez de tratar. Foi um choque. Desenvolvi aversão à "gestão do risco". Percebi que não gosto de trabalhar na defensiva; que não sou passiva mas activa, que questões teóricas e hipotéticas não têm nada a ver comigo, que os clientes e as questões reais me faziam falta. Faziam-me falta as pessoas. A dinâmica da organização está muito afastada daquilo que eu sou. Vi-me no entanto forçada à adaptação. Era o meu trabalho, era o que tinha de fazer. Aos poucos fui-me aproximando de áreas que estavam mais perto do meu gosto, arranjei uma forma de fazer isto funcionar. O princípio por detrás do trabalho continuava o mesmo, não ajudas nem resolves, só antecipas e prevês (eu que nem gosto de futurologia) mas encontrei áreas que tolerava melhor, especializei-me no direito do trabalho. Encontrei o meu sítio, ainda que um sítio menos feliz do que o escritório (que ainda tenho no coração, como se sabe). Estive quatro anos no mesmo sítio e decidi mudar de área. Foram novamente constrangimentos da vida (desta vez, vinda para o Porto) que me fizeram chegar a onde estou agora. Já tenho falado do meu trabalho vezes de mais. Se me achava afastada de problemas reais e pessoas nas minhas funções anteriores, agora elas fazem mesmo parte de um universo diferente. Nem nos vemos. E se consegui arranjar forma de, melhor ou pior, encontrar algum sentido prático no que fazia, agora é impossível (talvez ainda lá chegue, não sei). Levo sete meses disto e continuo a não gostar como no primeiro dia. Sinto que todos os dias me tenho de esquecer de quem sou, de que é que a minha formação é feita, qual é a minha vocação, para conseguir trabalhar. Não resolvo problemas, só faço controlos; não tenho pessoas, só tenho mapas e tabelas e gráficos e análises. Não há problemas reais porque inventamos este mundo que dizem que é muito importante e onde eu não consigo ver importância nenhuma. Eis o meu verdadeiro problema, consigo perceber agora. Estou demasiado afastada daquilo que importa e é isso que é urgente mudar.

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