Devaneios de dias à noite


O dia em que entrei naquele sítio foi um dia de um caminho sem volta. De repente ele disse que já não podia esconder mais tempo e nesse dia foi como se o visse a explodir. Olhando para aí, marcou muita coisa; sobretudo o início de uma fase que indicou o fim daquela estrada.

Era óbvio que se passava ali alguma coisa. Havia uma tensão, não sei bem. Mas não falávamos. Conversa de circunstância, bons dias, até amanhã.

Mas tínhamos encontros à noite.
Falávamos durante horas ou simplesmente passeávamos pela cidade. Uma ou outra vez víamos um filme ou tentávamos ler um livro em conjunto, discutíamos a vida, os dias, o meu futuro, o futuro dele mas nunca o nosso. Depois, fazíamos de conta que nada acontecia entre nós.
No dia seguinte havia um novo dia, como estás, como foi o fim de semana.
Nunca nos tocamos, salvo ao de leve, sem querermos. Não havia beijos nem sexo. Nem promessas. Mas havia um flirt. Eu dizia coisas que o provocavam e ele respondia a ver até onde ia. Mas não cedíamos. Fazíamos de conta que nada acontecia e os dias em que não nos encontrávamos eram aparentemente normais.
Não combinávamos. Aparecíamos.
Eu ia tomar café depois de jantar e um dia descobri que ele também. Depois sentou-se e descobrimos que nos dávamos bem. No dia seguinte a mesma coisa e desde aí que foi assim.
Mas se num dia um ia e o outro não, ninguém reclamava, ninguém dizia "estive à tua espera", não se perguntava o que passou. Por vezes acontecia que a explicação chegava na manhã do dia seguinte, em conversa casual com outro colega, de forma a que um ou outro pudéssemos ouvir: "ontem fui jantar com uns amigos a um restaurante novo que tens de experimentar", "ontem à noite fiz uma máscara, pintei as unhas, comi gelado, coisas de meninas". Mas nunca directamente. Sempre a um terceiro, de modo a que eu ouvisse. E eu fazia o mesmo, confesso.

Nas noites em que eu ia e ele não aparecia dava por mim a sentir a sua falta. Nunca me disse se sentia o mesmo.
Não havia aqui nenhuma espécie de sentimento profundo ou amor camuflado. Habituei-me à companhia, que por vezes durava até ás duas, três da manhã. Eu dizia-lhe "amanhã vou estar com a cara num oito" e ele chegava ao ponto de me perguntar no dia seguinte o que andei a fazer até tão tarde. Dito assim, parece ridículo. 

Quando saía de casa para os nossos encontros ia sempre a pensar se aquele seria o dia em que um de nós perguntava o que se passava ali, naquele canto da cidade onde ninguém nos via, onde dizíamos o que nos apetecia, em que nos provocávamos, onde por vezes havia um ligeiro toque. Mas nunca acontecia, nenhum se lembrava. E no dia seguinte íamos trabalhar.
Durou mais de um ano.

No Natal quis-lhe oferecer umas luvas de lã porque frequentemente reclamava do frio da cidade mas achei muito pessoal. Como se o que fazíamos todos os dias, quase à mesma hora sem qualquer combinação, não fosse pessoalíssimo.
Fazíamos de conta.
Dizíamos, eu dizia, a nós próprios que não existia qualquer sentimento, que os passeios eram normais, que a cumplicidade era casual, que o entendimento era igual a tantos outros, que não se passava nada de mal. Não havia exigências. Nem pedidos. Nem por favores. Não passava tudo de um mero acaso, de duas pessoas que se encontravam e decidiam ficar a conversar uma hora, três da manhã, cinco...
Ninguém sabia o que se passava, nem mesmo nós os dois. Facilmente responderíamos "nada" se com isso fossemos confrontados. Mas também nunca parámos para pensar. Só agora. Que não podíamos esconder mais tempo.

Um dia disse-me "vou-me embora." Tão pouco percebi o que queria dizer. Mas que estranho soava um leve insinuar do que acontecia entre nós, que estranho admitir, abrir os olhos.
"Não percebo."
"Vou embora. Vim para me despedir."
Quis perguntar para onde, com quem, quando, mas quem era eu? Nós não existíamos. Encontrávamos-nos casualmente mas ninguém admitia. Fazíamos de conta. E eu fiz de conta que era normal.
"Tudo bem." Não me deves nada, não me pertences, não tens de me explicar.

Coisas que não são minhas




“Não percebo porque é que “amo-te” se escreve desta forma: amo-te. Quando deveria ser desta: amote. Amo-te não deveria ter hífen (…). O amote de que falo, este, não deveria ter espaço para que nenhuma letra respirasse, para que ficassem ali as letras apertadinhas de forma a não caber mais nenhuma. Porque a verdade é que, quando se ama alguém, não cabe mais ninguém ali. Porque não há espaço. Porque as letras estão literalmente sufocadas por essa palavra que se deveria escrever apenas e só assim: Amote.”



Fernando Alvim
50 anos de carreira

Projecto de ano novo




O ano novo é engraçado. Como todas as coisas novas, talvez. Chega o dia 31 de Dezembro e começa a cabeça a pensar no que aí vem, no que poderá vir, o que reservará o próximo ano, tão esperado. Há resoluções, tomadas de decisão, há promessas de não cometer os mesmos erros, de fazer finalmente o que vimos adiando, há desejos de coisas boas, do melhor possível, de um grande ano. Mas ao fim de alguns dias, já habituados ao novo ano, é simplesmente normal, como os outros e o hábito faz esquecer as promessas, os desejos, as resoluções. No fim do ano somos sempre pessoas melhores, amigos melhores, familiares mais dedicados, parentes mais próximos. Prometemos que nos veremos em breve e sempre, todo o ano, que será diferente do anterior. Há algo no dia 31 que traz consigo um sentimento de corte com o passado, de mudança, mas também de novidade, de alterações e julgo que é isso que nos compele a querermos ser diferentes. Devíamos todos escrever as resoluções de ano novo no dia 31 de Dezembro de cada ano; e no fim, saberíamos sempre o que alcançamos e o que deixamos de cumprir. E talvez ficássemos surpreendidos com as promessas que deixamos passar.

Quanto a mim, deixei de escrever resoluções de ano novo há vários anos. Há uma série de coisas que quero fazer, talvez no fim de cada ano me lembre delas e queira mesmo que ocorram no ano seguinte, mas não as numero nem reduzo a escrito. Vou pensando ao longo do ano; algumas cumprem-se, outras dariam boas resoluções em Dezembro. Não tenho a sensação de que tenho toda uma vida por viver ou experiências para conhecer, daquelas que só me ocorrem a 31, mas este ano lembrei-me de algumas.

Uma delas, foi dar início a um novo projecto.
Começou em Março, mas é o que estamos a fazer.

Agora com imagem...



Só para ver se funcionava..!

Coisa número um!

A primeira coisa é ultrapassar a dificuldade de escrever com frequência num computador, substituindo assim (ainda que parcialmente) o papel!
Cumprida essa tarefa, vamos ter isto, aquilo e outras coisas!