Bom, é certo que os autocarros da Carris têm uns lugares reservados a deficientes físicos, grávidas e acompanhantes de crianças de colo, situados junto da porta, com mais espaço entre os lugares e, apercebi-me hoje, de tecido diferente dos restantes. Pode dizer-se que estão efectivamente bem identificados e que, por isso, quem não preencher os requisitos e ainda assim ali se sentar, estará consciente de que ocupa um lugar que não lhe pertence. Aceite para não mais ser retirado.
Ponto completamente diferente é a cena deplorável que presenciei hoje num desses autocarros quando entrou um senhor dos seus 70 anos com uma bengala e se sentou num desses lugares, onde estavam duas senhoras que, aparentemente, não se enquadravam no âmbito "deficiente físico, grávida ou acompanhante de criança de colo". Perante esta situação, o senhor pôs as garras de fora e ó má educação para que te quero! Num volume consideravelmente alto (isto é, aos berros para toda a gente ouvir), o dito senhor começou num monólogo, dirigido às duas senhoras, mas dito para o ar (entenda-se, para a plateia).
- Não há educação nenhuma, não há respeito! Estas duas aqui sentadas! Não sabem ler?? Lugares reservados! Reservados! Está escrito, a vermelho! Mal educadas! Se tivesse aqui uma coima de mil euros ninguém se sentava! Agora assim! Se não houvesse lugar para mim, de certeza que o autocarro não andava enquanto não me sentasse aqui! Olha agora, com este senhor! Até quero ver se se levantam, as mal educadas! "Sente-se aqui, sente-se aqui!" Isto não há respeito! E não se levantam!! Não percebem?! Reservado!! Não estão a ver que os lugares são vermelhos?? São diferentes dos outros?? Não são para vocês! São reservados! Devem ser burras!
Note-se que as duas senhoras estavam sentadas respectivamente ao lado e em frente a ele. Nisto diz uma delas, desesperada:
- Eu tenho um problema de coluna, já fui operada muitas vezes.
- Tem um problema de coluna?? E onde está o comprovativo?? Onde está, diga lá! Problema de coluna..! Tem é problemas de cabeça!
- Tenho sim, já fui operada à coluna!!
- Mostre, mostre lá então o comprovativo!
Ao que a senhora se põe em pé no autocarro em pleno andamento, caindo praticamente em cima do senhor, levanta a saia que era comprida até aos pés e mostra-lhe o fundo das costas, roupa interior incluída. Risota geral, como se está a ver. Mas espanto, sobretudo.
- Tape lá isso, que cheira mal!! - diz o senhor.
Eu, chocada! Havia uma agressividade tão grande nele que, se no início me pareceu colher a aprovação dos presentes tendo em conta a causa que defendia, a certo ponto começou a ser tão constrangedor, que ninguém sabia o que fazer. Até que enveredou pelo racismo. "E vá mas é para o seu país, e há portugueses de primeira e de segunda, e eu sou é pouco racista, devia ser mais, e vocês são todos uns burros, e nós devíamos era ter-vos roubado tudo, e deviam ser expulsos daqui e vá morrer longe..."
Há gente tão ignorante, tão mal formada, tão sem a mínima noção que eu fico no meu lugar na dúvida entre nada fazer e dar-lhe com um pau nas costas. Foram vinte minutos de viagem com disparates do princípio ao fim e repare-se que eu saí antes dele, embora não ser antes de ter a felicidade de ver um senhor mais velho a sair em defesa da senhora com o alegado problema de couluna. Alguém ao meu lado comentou entre dentes que a crise estava a deixar as pessoas numa frustração assustadora. Mas gente assim só pode ter muito mau fundo, independentemente das condições externas. Nota mental: não voltar a andar de autocarro tão cedo!